Rio Grande do Sul

DITADURA NUNCA MAIS

Pela memória e justiça: “O sonho do Fernando não se apaga nunca”

Em desagravo às manifestações de Bolsonaro, uma homenagem ao militante Fernando Santa Cruz foi realizada em Porto Alegre

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Sobrinho de Fernando, Antônio Augusto Santa Cruz, representou a família
Sobrinho de Fernando, Antônio Augusto Santa Cruz, representou a família - Foto: Fabiana Reinholz

“Hei de vê-lo voltar, o meu doce consolo, o meu filhinho. Passam-se anos, e o véu do esquecimento baixando sobre as coisas tudo apaga. Menos da mãe, no triste isolamento, a saudade que o coração lhe esmaga." O poema foi escrito por Elzita Santa Cruz, a dona Zita, mãe de Fernando Santa Cruz, desaparecido político e recente alvo de ataques do presidente Jair Bolsonaro. Como forma de desagravo, foi realizada, no sábado (31), uma cerimônia no Memorial Luiz Carlos Prestes que homenageou a memória e a história de Fernando. Representando a família, esteve o sobrinho Antônio Augusto Santa Cruz.

Evento lotou o Memorial Luiz Carlos Prestes | Foto: Fabiana Reinholz  

Dona Zita morreu aos 105 anos, no dia 25 de junho, sem saber o que aconteceu com o seu filho. Também não viu os ataques feitos pelo presidente Jair Bolsonaro ao neto Felipe Santa Cruz, presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e filho de Fernando. “Vó Zita iniciou sua saga por prisões, quartéis e órgãos de repressão à procura dos filhos. Sempre foi grande defensora dos direitos humanos e, maiormente, da democracia. Tio Fernando foi o primeiro a ser preso”, expôs Augusto.

O primeiro ataque feito por Bolsonaro à família ocorreu no dia 29 de julho, quando deu a entender o que havia acontecido com Fernando. “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio desaparecer no Rio de Janeiro”, apontou. Posteriormente Bolsonaro chegou a afirmar que o pai de Santa Cruz foi morto pelo grupo de esquerda do qual fazia parte, e não pelos militares.

A afirmação é desmentida pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade, que afirma que Fernando Santa Cruz e o amigo Eduardo Collier Filho provavelmente foram presos por agentes do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) no Rio de Janeiro.

Pedro Ruas mostra única foto de Fernando com seu filho | Foto: Fabiana Reinholz 

O ex-deputado Pedro Ruas (PSOL), organizador do evento, explicou que a homenagem começou a ser articulada desde o dia da declaração de Bolsonaro. “Quando houve o ataque de Bolsonaro ao presidente da OAB, usando a figura honrada de Fernando Santa Cruz, o presidente da República atacou os mortos, os desaparecidos, os torturados, os presos, os cassados e os seus familiares”, afirmou.

O evento, no qual participaram políticos do PT, do PCdoB, do PSTU e militantes de movimentos sociais, foi permeado por discursos e apresentações musicais de Raul Ellwanger, que interpretou “Eu só peço a Deus”, do compositor Leon Gieco, e a cantora Karen Roberta de Moura, com “O bêbado e a equilibrista”, hino da anistia que também está completando 40 anos, de João Bosco e Aldir Blanc.

Manifestações 

Olívio Dutra | Foto: Fabiana Reinholz  

A primeira manifestação foi feita pelo ex-governador Olívio Dutra, que salientou que não podemos esquecer aqueles que deram a vida pelo bom combate. “Sofremos uma enorme violência quando esse presidente (Bolsonaro) se referiu ao Fernando como se referiu. A democracia precisa ser resgata e, acima de tudo, qualificada. O sonho do Fernando não se apaga nunca”, frisou.

Manuela D'Ávila | Foto: Fabiana Reinholz   

Para Manuela D'Ávila, precisamos da democracia para garantir a nossa liberdade. Em sua avaliação, se tivéssemos valorizado a memória e a justiça, não estaríamos vivendo o governo Bolsonaro. “Se nós tivéssemos conversado com os brasileiros e as brasileiras sobre Fernando Santa Cruz, Luiz Carlos Prestes e a guerrilha do Araguaia, se tivéssemos conversado sobre Ustra, a ditadura militar e a tortura, se tivéssemos falado sobre a chacina Lapa, sobre a Casa da tortura, se tivéssemos falado de forma não romantizada dos que abriram mão da sua juventude para que nós pudéssemos viver a democracia, nós não teríamos Jair Bolsonaro governando o Brasil”, ressaltou.

Fernanda Melchionna | Foto: Fabiana Reinholz  

Complementando a fala da Manuela, a deputada Federal Fernanda Melchionna (PSol) salientou que uma história não contada faz com que se possa repetir erros no presente e no futuro. “A ausência de justiça de transição também determina muito do que vivemos atualmente. Infelizmente o Brasil é o único país da América Latina que não fez justiça de transição, que não puniu os torturadores, que não puniu os comandantes da Casa da morte, que não puniu os militares e os empresários da ditadura civil-militar que apoiaram os anos de chumbo. É muito importante fazer e seguir a luta por memória, verdade e justiça num tempo complexo”, afirma.

Houve manifestações de outras lideranças de partidos de esquerda e parlamentares, como o e ex-ministro Miguel Rossetto, as deputadas estaduais Sofia Cavdon (PT) e Luciana Genro (PSol) e o vereador Roberto Robaina (PSol), dentre outros.

Famílias em luta 

Emocionado, Augusto, que não chegou a conhecer o tio, em sua fala, frisou o papel da sua avó e a trajetória de sua família. “A busca de vovó Elzita pelo seu filho consistiu na peregrinação por quartéis, como o DOI-Codi, e procura por entidades, políticos e autoridades do regime, além da Cruz Vermelha, Anistia Internacional e Organização dos Estados Americanos. Acabou tornando-se símbolo da resistência. Lutou até quando pôde pela descoberta do paradeiro de tio Fernando, embora não tivesse mais pretensões de descobrir a identidade dos possíveis assassinos do filho. Vovó perdeu a lucidez há apenas três anos, ou seja, aos 102. Morreu aos 105 anos, sem saber a verdade sobre a morte do seu filho.

Ao final do discurso, Augusto leu o atestado de óbito de Fernando, que atesta seu falecimento “em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.

Na plateia, por diversas vezes emocionada, estava Sônia Maria Haas, irmã mais nova de João Carlos Haas Sobrinho, o Dr Juca, morto na guerrilha do Araguaia, em 1972, aos 31 anos.

Assim como a família Santa Cruz, a família Haas recebeu a certidão de óbito retificada, que atesta a morte não natural, violenta, causada pelo regime militar. “Faleceu entre setembro e outubro de 1972, sendo a data mais provável o dia 30 de setembro de 1972, sendo Xambioá, Tocantins, no âmbito do evento reconhecido como Guerrilha do Araguaia”, atesta o óbito.

Sônia mostra a certidão ao busto em homenagem ao irmão, em São Leopoldo | Foto: Thales Ferreira / Prefeitura de São Leopoldo 

João Carlos, natural de São Leopoldo, formado em medicina, foi líder do centro acadêmico, e com o golpe de 64, foi preso em abril daquele ano, permanecendo um mês nessa situação. Depois de concluída a residência no hospital Ernesto Dorneles, partiu para São Paulo, em janeiro de 66. A última carta que a família recebeu foi em julho de 69.

A partir de então, a saga para encontrá-lo foi sem sucesso. Somente em 79, com o lançamento do livro “Guerra de Guerrilhas no Brasil: a saga do Araguaia”, de Fernando Portela, o nome de João figuraria na relação de “desaparecidos”. A partir do lançamento do livro e de entrevistas que vão aparecendo, a família passa a ter um vislumbre do destino de Juca. “Com as revelações, a gente começa a entrar nesse processo da perda, confirmando no livro, depois entrevistas. Começamos a viver esse processo de desaparecimento e dessa morte presumida porque não tinha comprovante”, aponta Sônia.

Sônia era criança quando o irmão desapareceu, e isso a marcou, transformando em missão de vida pelo seu irmão e pelos pais. “Tudo isso é mexer na ferida, se expor. Eu me enxerguei na fala de Augusto há 40 anos atrás, quando comecei essa luta”. Os restos mortais de Juca nunca foram encontrados e devolvidos aos familiares.

Assista a cobertura da Rede Soberania:

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Edição: Marcelo Ferreira