Paraíba

ANIVERSÁRIO JP

Artigo | Cidade Verde: te quero viva!

João Pessoa, que já foi uma das cidades mais verdes do mundo, hoje, tem árvores cortadas por impedir a visão do mar

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
João Pessoa tem uma das maiores reservas urbanas nativas de Mata Atlântica.
João Pessoa tem uma das maiores reservas urbanas nativas de Mata Atlântica. - Reginaldo Marinho (Reprodução)

Na década de 70 João Pessoa era chamada em bordões de rádio como Cidade Verde e Jardim das Acácias, título, aliás, de uma música de Zé Ramalho sobre nossa capital. Pelos anos 80 e 90 era celebrada nos guias turísticos como a capital brasileira com mais verde por habitante, sendo a segunda no mundo. Com a verticalização acelerada, a derrubada das árvores de quintal e jardim das casas demolidas, o plantio nas calçadas dos prédios de meras e pífias palmeirinhas ornamentais e ainda com o Mal do Recife, que dizimou grande número de mangueiras centenárias pela cidade, nossa cobertura vegetal mergulhou em franca decadência, ainda mais com gestões municipais que não zelaram pela expansão do verde. 

No último 10 de junho um diário local deu página inteira sobre derrubada de 1.500 árvores na orla de João Pessoa, pois seriam árvores "invasoras" e "não nativas". Isso ocorre nesse momento de franca decadência da nossa cobertura vegetal e tem sido noticiado de maneira extremamente trivial, em abordagens jornalísticas dóceis em relação às derrubadas frequentes. As reportagens que se seguiram destacavam essa necessidade urgente de derrubada de árvores não nativas. Isso sem a ponderação necessária de que jambeiros, mangueiras e até mesmo coqueiros não são nativos, vieram de outros continentes e, no entanto, há séculos compõem a beleza e trazem conforto a nossas paisagens.  
Os dois argumentos principais para a extraordinária e aparentemente urgente derrubada são que as árvores, sobretudo as castanholas, prejudicariam a vegetação rasteira que sustenta as dunas. O outro ponto é que as árvores impediriam a vista do mar, tendo se tornado “florestas de mata fechada” em alguns pontos. Ora vejamos: vim morar em João Pessoa em 1971, aos seis anos incompletos, precisamente na beira-mar do Cabo Branco, quando era um bairro pouco habitado. De lá para cá morei algumas décadas no eixo Cabo Branco-Tambaú e nas vezes em que estive residindo em outros bairros, nunca deixei de frequentar a orla. Pela observação, fica claro que esse prejuízo à vegetação rasteira, bem como o impedimento da visão do mar,  não correspondem aos fatos. 

Só para exemplificar algo que vale para o eixo Cabo Branco-Tambaú inteiro, temos o pedaço de praia em frente ao antigo Manaçaí, entre as ruas Áurea e Vereador Antônio Pessoa da Rocha. Entre os anos 70 e 80 entrando pelos 90 não havia um mínimo de vegetação rasteira naquela área, era areia pura. Nesse tempo a orla tinha mais pés de castanhola que hoje e a vegetação fixadora de dunas - basicamente de salsa-roxa, ou salsa da praia ou cipó da praia - cresceu sem nenhum problema e superando em muito o pouco que havia.  Desde os anos 70 tínhamos na orla castanholas enormes, o que indica no mínimo um século da presença delas em nossas praias. A faixa de areia dessas duas praias citadas só cresceu de lá para cá e a vegetação sobre as dunas reapareceu e prosperou nesse período.

Quanto ao argumento de que as árvores impedem a visão do mar, esse é mais frágil ainda e pode ser conferido agora mesmo. As praias urbanas mais centrais de João Pessoa -- Cabo Branco, Tambaú, Manaíra -- tem 8 km de orla. Os trechos (belíssimos, aliás) onde a vegetação toma a vista do mar, ocupa, se muito,  200 metros desses 8 mil metros. E a prefeitura quer derrubar pois diz que atrapalham a vista.  Ora, convenhamos, o argumento é inverossímil, não se sustenta em hipótese alguma.

De tudo isso,  temos a certeza de que essas intervenções previstas pela prefeitura municipal de João Pessoa devem ser amplamente discutidas pela sociedade. Se for necessária a retirada de árvores, que se diminua a quantidade prevista e que se sacrifique apenas a de pequeníssimo porte. E que o replantio, com espécies que se apontem como mais adequadas, seja imediato, em dobro e que sejam árvores que ofereçam sombra. As gerações de agora têm o direito de continuar usufruindo das árvores de maior porte, deixando para as gerações futuras essas outras árvores que demorarão décadas para dar sombra e compor com beleza a paisagem. 

Outra questão são as podas radicais que estão com frequência mutilando nossas árvores, privando a população de sua sombra, elevando a temperatura da cidade, provendo desconforto, eliminando áreas de convivência social. É necessário que se reflita sobre o procedimento das empresas que realizam a poda e a participação da administração municipal nesse processo. 

Conversando com biólogos, arquitetos, urbanistas, ativistas do meio-ambiente, jornalistas, professores, antropólogos, firmei opinião que essa naturalização da supressão de vegetação vai dentro de um processo maior de higienização das ruas na cidade, num momento em que os ventos político-econômicos espalham avassaladoramente  a miséria pelas ruas do país. Mais de uma fonte me informou do dedo do trade turístico local exigindo das autoridades o corte de árvores para afastar os moradores de rua que estão se instalando nas praias urbanas. 

Ora, de fato não se deve demagogicamente deixar o espaço comum de lazer servir de moradia, ainda mais sem nenhuma condição sanitária para isso. Mas problemas complexos pedem soluções igualmente complexas. A dita “escória” que tem vivido desgraçadamente nas ruas, numa quantidade inédita na cidade, deve ser tratada como seres humanos plenos de direitos que são. Políticas públicas de acolhimento e proteção social devem vir antes de tudo. Há instrumentos para isso. Expulsá-los com o corte de árvores, além de desumano e infame, seguramente não vai resolver o problema, vai acirrá-lo. 

Se a PMJP está à frente desse processo amplamente equivocado, assim como anunciou no passado o corte das 200 árvores da Beira-Rio, podemos também refletir que isso só vai ocorrer se governo do Estado (Sudema) e o Ibama permitirem. Se a população se calar, será conivente com esse evento muito triste, esse retrocesso enorme na vida da cidade. Por hora, como numa prece, podemos remeter aqui a alguns versos recortados da canção Aboio, de Caetano Veloso, sugerindo: urbe imensa, pensa o que é e será e foi, tem piedade. Megacidade, conta teus meninos. E pensa-te. 

* Professor da UFPB
 

Edição: Heloisa de Sousa